Hoje,eu tinha me programado para postar mais um texto do tipo “meu querido diário” seguindo o ritmo do texto anterior, mas acho mais interessante tratar do assunto da semana que provocou-me um sentimento de indignação: a discussão sobre a descriminalização [ou não] do aborto no Brasil. Não é porque eu não esteja entre os meus que não acompanhe o que acontece com meu país, diferentemente de alguns [outra história, outro texto], eu vejo os jornais-falado através da tv online [quando minha net permite], leio os jornais, converso com as pessoas, e agora faço parte de uma das coisas mais “inúteis” da net [e estou gostando] que me twitta [porque agora já existe o verbo twittar] com mensagens sobre o Brasil.
Essa discussão,em voga, não me surpreende, mas por trás dela, há um problema gravíssimo que eu não tenho a menor idéia de quando e como pode ser solucionado. O brasileiro não sabe diferenciar o público do privado, não entende que estruturas politicas, sociais e econômicas não podem ser estruturadas pelo modelo rural do Brasil de outrora, dos primeiros anos, do início do período colonial em que tais estruturas eram sustentadas pela família de modelo patriarcal. Por favor, não estamos mais nessa época, [“graças a Deus”? ] não podemos lidar com os assuntos públicos como se fossem extensão da nossa família, e agora vou ser o mais didática possível: quero dizer que há uma separação entre Estado e família, Estado e Igreja. E essa discussão, assim como o nepotismo e a corrupção, são consequências dessa confusão entre o que é público e o que é privado, dessa mentalidade de um período que já passou.
A questão da descrimilização do aborto não é a mesma questão em que você se posiciona a favor ou contra o aborto, você pode ser a favor da descriminalização, mas contra o aborto que não vai estar sendo incoerente. Pelo contrário, você estará tomando uma decisão baseada em juízo de fato e não de valor [isso é certo ou isso é errado], mas mantendo seus princípios ético-morais[teórico-práticos, vale ressaltar que ética e moral são duas coisas diferentes] e religiosos. Dessa maneira, ao tratar desse tema [que é um verdadeiro vespeiro], não quero tomar uma posição pessoal a favor do aborto, dizendo se faria ou não [até mesmo porque não sei],a questão tratada não é essa, uma vez que não é uma situação específica e pessoal, mas de uma possível regulamentação sobre o assunto, ou seja, legalizar o aborto não significa que você deva fazer um, apenas significa que se você quiser, não precisa se colocar nas mãos de um açougueiro, correndo o risco de uma morte prematura, de problemas inflamatórios e nem de uma possível esterelidade, você terá um suporte hospitalar que cuidará do procedimento. Enfim, o que eu não acho cabível é uma pessoa defender a não descriminalização do aborto no Brasil fundamentando-se apenas em pressupostos religiosos.
Consigo perceber [e é facílimo] que nosso cotidiano está impregnado de valores cristãos, que, com certeza, o Brasil sofreu e ainda sofre influências cristãs em sua moral, no entanto não significa que muitos dos princípios morais que a Igreja católica carrega seja princípios que nasceram com ela, muitos já existiam antes mesmo da sua institucionalização, já havia códigos morais e civilizações, como a grega, que os possuía e sem nenhuma relação com a fé cristã, a igreja católica apenas se apropriou de muitos princípios de códigos morais diversos, por exemplo, não matar não é um principio que seja atribuído apenas a fé cristã, assim como não desejar a mulher do próximo, mas o conceito do perdão sim, esse é extremamente cristão, assim como a caridade. A lei têm por base a moral de cada povo, mas moralidade não está estritamente atrelada a religião, ou a um credo, não significa que a lei tem que levar em consideração a moral cristã, principalmente porque o estado é laico e,portanto, não deve estar submetido a nenhuma religião.
Já estive na posição em que amigas grávidas sem saber o que fazer, cogitaram a possibilidade de um aborto e perguntaram-me: você faria? Naquele momento de desespero, eu sei que o que elas queriam ouvir, sei que queriam um apoio, que eu dissesse: claro, faria, vamos lá, não é nada demais. Essa situação é muito complicada, na verdade, não sei o que faria, não vou dizer que o aborto não é nada demais, é uma agressão ao corpo da mulher e milhares de mulheres morrem ou pior, ficam estéreis por causa de um procedimento mal-feito. Mas, disse e digo, só saberia se estivesse em tal situação,qualquer opção que a pessoa tome, eu apoio, quem sou eu para julgar? Vamos deixar de salvar vidas, deixar de resolver um problema de saúde pública porque os padres e os pastores são contra? Vamos deixar posicionamentos de escolha pessoal com fundamentação religiosa se sobrepor a uma questão pública? Quer dizer, “eu” que não sou religiosa, vou perder o direito sobre o meu corpo porque eles são contra?
E mais uma vez, todos esses problemas nos remetem a um maior, o problema educacional. Essas amigas, as quais mencionei, poderiam sim, evitar uma gravidez não desejada para não chegar ao ponto de um aborto, é claro. Elas não são analfabetas, fazem parte de uma elite intelectual, já que conseguiram entrar e sair de uma faculdade, seja ela privada ou pública, o que não é a realidade da maioria da população e mesmo assim, com todas as informações acessíveis encontraram-se em tal circunstância, imaginem as mulheres que não possuem o mesmo privilégio que elas. Claro que eu, também, acho que deva se investir na prevenção, mas isso demanda tempo, enquanto isso, milhares de crianças nascem dessas mães e propagam a mesma história ou mesmo são largadas como um chinelo velho que não serve mais. A regulamentação do aborto não quer dizer que em toda esquina terá uma mulher fazendo um, ou seja, regulamentação não é sinônimo de banalização. Até mesmo porque deve haver um período entre um aborto e outro, mesmo uma mulher que tenha feito muitos abortos em um determinado momento não poderá mais fazê-lo, porque fragiliza a parede do útero o que pode remeter a problemas gravíssimos no futuro.
A questão do aborto é só mais uma dentre muitas outras que encontram-se no rol de taboos da sociedade brasileira. Há anos, o homossexualismo era considerado uma doença e estava entres as doenças estipuladas pela OMS, atualmente não é mais [o que é óbvio], mas a Igreja Católica e as milhares de igrejas evangélicas distribuídas pelo Brasil [e elas sabem o real significado da expressão, crescei e multiplicai-vos] consideram que seja. Isso significa que o homossexualismo é uma doença? Quer dizer que o Estado não pode estipular leis que garantam o bem-estar desses cidadãos que também pagam impostos, que também contribuem para sociedade porque os moralistas de plantão condenam? Vou mais longe. Convoco todas as brasileiras: mulheres, parem de usar anticoncepcional, parem de usar camisinha, parem de tomar a pílula do dia-seguinte e, claro, não abortem [porque não usaram os métodos anticonceptivos condenados pelos religiosos], vamos super-povoar o Brasil, vamos aumentar a pobreza, a miséria e, é claro,baixar os indíces de qualidade de vida.
Nessa discussão,não acho legítimo que argumentos religiosos e pessoais interfiram numa questão de Estado, no entanto há um argumento legítimo e relevante relacionado ao período que devemos identificar como o início da vida. Se o início da vida é dado no momento que o feto é formado, o Estado tem por obrigação tutelar a integridade física não só da mulher, mas igualmente, do nascituro [colegas do direito, se posicionem sobre o tema, deixem comentários, vamos conversar sobre]. E a questão que fica no ar é: qual o início da vida? O feto não teve escolha, é justo escolher por ele? Se nossa legislação compreender que o feto já é uma vida, o aborto é um homicídio tipificado pelo nosso código penal. De acordo com a ciência médica, a questão sobre o início da vida ainda é discutível, a maioria dos pesquisadores acredita que ela é iniciada a partir da presença dos primeiros batimentos fetais que já podem ser observados em algumas semanas, entre 7-8 semanas, o feto sem batimentos não é viável. Outros, já consideram a viabilidade do feto e portanto o início da vida intra-uterina quando os órgãos já se encontram formados. E a maioria dos abortos espontâneos ocorrem nesse período em que o zigoto não é viável, devido a má formações genéticas, e na maior parte dos casos de maneira imperceptível como se fosse um ciclo menstrual irregular. Dessa maneira, se considerarmos que antes de dessas semanas não há vida, podemos considerar que a mulher é responsável por si, ou seja, pelo seu corpo, do momento da concepção até o início da vida e que ninguém possui o direito de intervir? Ou devemos entender que mesmo não sendo uma vida, há uma potencialidade de vir a ser e portanto não cabe a mulher cercear o “direito” desse zigoto tornar-se vida?
Concordo com Alasdair MacIntyre ao diagnosticar que há uma incomensurabilidade de argumentos entre os que defendem e os que não defendem a descriminalização aborto, principalmente se os argumentos estiverem fundamentados na religião virando um jogo de afirmação e contra-afirmação sem nenhum posicionamento legítimo, por isso é mais do que necessário que esse tema seja exaustivamente debatido.Nos dias de hoje, passamos por um melange de princípios morais, que perpetuamos e nem mesmo sabemos porque, nossa linguagem moral está passando por um momento de desordem, é como se do dia pra noite disessemos, vamos matar todos os cientistas porque as mazelas do mundo foram causadas por eles, e prendessemos, matássemos os cientistas, e seus livros fossem rasgados. Depois um novo partido determinasse: não, os cientistas não são responsáveis pelo que houve de errado, vamos reestruturar as ciências, mas como paginas foram arrancadas, teorias superadas dividem o mesmo lugar com teorias modernas, o que causa a desordem na linguagem moral que deve ser estruturada, mas como? Nietzsche já diagnostica isso, mas não dá nenhuma solução, e acredito que podemos chegar a um consenso sobre o assunto, baseado na solução macIntyriana para a desordem de tal linguagem moral.
O que me incomoda é o fato de que podemos escolher um candidato a presidência em detrimento de outro [deixo claro que não tomo posicionamento por nenhum dos candidatos, mas pela questão] tendo por base um posicionamento legítimo sobre um tema que deve ser discutido [mas o que me passa é que essa discussão não pode nem mesmo ser feita porque vai de encontro aos mandamentos de Deus] enquanto se escolhe palhaços, jogadores de futebol, cantores, estilistas para nos representar no Congresso Nacional só porque são famosos....Mas ainda me incomodou mais a possibilidade de um candidato ter que assinar um documento se comprometendo a não legislar sobre o assunto por pressão de instituições religiosas para se manter na disputa. A sociedade brasileira não pode fugir dessa discussão, não podemos ficar parados no tempo, a moral evolui com o tempo, ou seja, essa evolução deve acompanhar os valores, princípios e normas, com as quais se relaciona.
Ps.: Espero que minha mãe nunca leia esse texto, se não vai enfartar, ela é evangélica e acha meus posicionamentos um verdadeiro absurdo, sempre fala a mesma coisa: “não sei porque estuda tanto, só aprende o que não presta.
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